Especial: Impunidade e transição sem ruptura motivam protestos; Geisel admitiu que Herzog foi morto por militares
CARLOS FICO .
O tema da ditadura militar está na ordem do dia. Os membros da Comissão da Verdade logo serão indicados. Procuradores tentam driblar a Lei da Anistia para punir agentes da repressão. Manifestantes promoveram "escrachos" identificando supostos torturadores. A celebração do golpe de 1964 pelo Clube militar acabou em pancadaria no Rio.
Por que estamos voltando ao passado?
Em outras ditaduras militares latino-americanas, a marca da transição é o trauma diante da violência. Na Argentina, a brutalidade dos assassinatos, dos sequestros de bebês e o fracasso da Guerra das Malvinas tornaram inevitável o julgamento de militares.
No caso brasileiro, prevaleceu a tentativa de encobrir a violência. Além da censura durante o regime, a transição brasileira foi pactuada entre as elites civis e militares. A Lei da Anistia selou este pacto.
As marcas da transição brasileira são a impunidade e a frustração, não o trauma diante da violência. A campanha que acendeu as esperanças pela anistia "ampla, geral e irrestrita" culminou na lei de 1979, que impediu punições. Também as "Diretas Já!" terminaram em anticlímax: a eleição indireta.
A frustração com a impunidade e com a ausência de ruptura explica a retomada dos temas da ditadura. Ela acabou, mas a transição não.
A novidade é que o itinerário seguro traçado pelo governo (comissões sobre Mortos e Desaparecidos, da Anistia e da Verdade) pode mudar de rumo, como indica a agressividade de alguns protestos.
O tema deve seguir em debate. A Comissão da Verdade pode escolher, mais uma vez, ouvir os depoimentos das vítimas da repressão, o que não levará a nada de novo. Mas, se pesquisar no Arquivo Nacional documentos ainda secretos, vai surpreender -e vamos continuar revivendo o passado.
CARLOS FICO é professor de história do Brasil da UFRJ
'Que mal oferecia um monte de idosos?', diz general
MARCO ANTÔNIO MARTINS
Ex-secretário de Segurança Pública do Rio, o general Nilton Cerqueira, 81, disse ontem que a manifestação diante do Clube militar foi uma "afronta à Constituição". Ele ocupou o cargo entre 1995 e 1998, no governo Marcelo Alencar (PSDB).
"Nós não queríamos causar nenhum tumulto na cidade. O plenário do clube estava cheio de gente idosa. Queria saber qual o risco que oferecíamos", questionou.
O general, apontado como responsável pela morte de Carlos Lamarca, em 1972, reclamou do esquema de policiamento ao redor do clube.
Quando saía do local ontem, depois de assistir à parte do painel "1964 - A Verdade", Cerqueira precisou de escolta policial, que formou um cordão de isolamento para que ele chegasse ao metrô.
Ao descer as escadas com dois amigos, foi chamado de "assassino". Respondeu com um gesto obsceno.
"Gritavam que eu matei o Lamarca. E isso é novidade? Ele era um desertor do Exército brasileiro e na época essa situação foi apresentada ao público. Mas isso é passado", disse.
Hoje está prevista outra manifestação em homenagem ao golpe. Dez coronéis da reserva pretendem saltar de paraquedas na praia da Barra da Tijuca, zona oeste da cidade.
Desde o ano passado, a presidente proibiu qualquer manifestação ou ato de militares no dia 31 de março. Os coronéis afirmam que podem se manifestar por pertencerem à reserva da Força.
Fonte: / NOTIMP
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O que aconteceu com Rubens Paiva, Stuart Augel, Manuel Fiel Filho, Vladimir Herzog? Agentes da repressão deixaram suas digitais nesses e em centenas de outros casos de tortura, assassinato e desaparecimento de brasileiros durante o regime de exceção que se instalou no país em 1964. Memórias do general ditador Ernesto Geisel lançam luzes sobre esse tenebroso período da nossa história. Mas ainda é muito pouco para o país chegar à verdade.
CARLOS FRANCO
A ditadura segundo o general
Testemunho de Ernesto Geisel integra o passado a ser revisto pela comissão da verdade. Ex-presidente confirma que o Exército matou o operário Manuel Fiel Filho e teve participação decisiva na morte de vladimir herzog
A poucos dias do anúncio dos nomes da Comissão da Verdade responsáveis por desvelar os segredos guardados no porões da ditadura militar (1964-1985), um pouco das histórias escondidas pela repressão foi trazido à luz por uma entrevista concedida em 1993 pelo general Ernesto Geisel ao Centro de Documentação e Pesquisa (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Quarto presidente a ocupar o Palácio do Planalto depois do golpe de 31 de março de 1964, o "Alemão" confirmou que o regime à época não só praticava a tortura, como foi o responsável direto pelas mortes do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, em 1976. Geisel chegou a confirmar aos historiadores Maria Celina D"Araújo e Celso Castro que, ao contrário da versão oficial difundida à época, Fiel Filho foi, sim, morto por militares: "Num fim de semana, ele (o então comandante do Exército em São Paulo, general Ednardo D"Ávila Mello) não estava em São Paulo e mataram o operário".
Vladimir Herzog, 1975
O material recolhido pelos pesquisadores, que deve ser analisado pela Comissão da Verdade, reúne mais de 36 horas de gravações que traçam um panorama da história recente do país. Parte já foi publicada no livro Dossiê Geisel, mas vários trechos permanecem inéditos — como a confissão do assassinato de Fiel Filho pelo Exército. Maria Celina diz ao Correio que, mais importante do que os depoimentos dos comandantes militares coletados pela instituição — que encerram um ciclo até porque muitos morreram —, é avançar na reconstituição dos aparelhos de terror do Estado, que teriam provocado a morte ou desaparecimento de cerca de 500 pessoas, segundo dados do Ministério da Justiça e de ONGs de Direitos Humanos.
Manuel Filho, 1976
"Os militares, inclusive Geisel, defenderam a repressão, mas o regime de terror de Estado teve participação ativa da mídia e de empresários. Essa é a história que falta levantar. Espero que a Comissão da Verdade avance nesse sentido", pressiona Celina. Geisel, explica ela, tentou driblar e desmantelar a esquerda e a extrema direita durante o seu governo. "Teve êxito no primeiro combate, pois a esquerda se desmantelou, mas a extrema direita se manteve ativa e operante até o atentado no RioCentro, em 30 de abril de 1981, durante o show do 1º de maio", esclarece.
Faltaria ouvir, portanto, empresários que estão vivos e podem esclarecer o funcionamento das masmorras. "A sociedade que participou dessa repressão precisa e deve ser ouvida, como ocorreu na Alemanha pós-Hitler e como ocorre hoje na Espanha em relação à ditadura de Franco." Celina está convencida de que, assim, a história será resgatada e de que a anistia estará em xeque e poderá ser revista. "O governo do general João Baptista Figueiredo foi o governo dos órgãos de inteligência e o texto da Lei de Anistia levou em conta essa realidade." A historiadora não vê esse resgate da memória como sinal de revanche, mas como dever de Estado, em nome da verdade histórica.
Maria Celina contou que não se surpreendeu na manhã de 1993, quando Geisel defendeu a tortura, porque "o fez em nome da corporação, do Exército". Descendente de alemães, o general, que nasceu em Bento Gonçalves (RS) em 3 de agosto de 1907, teve formação luterana e guardava profundo respeito à hierarquia. Ao defender a tortura, tratou de dizer que um grupo de militares aprendeu as táticas na Inglaterra, durante o governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira e que, para evitar mal maior, a tortura se justificava. A confissão, dita em tom seco, tenta justificar a prática ainda negada pelos militares e será alvo da revisão histórica da Comissão da Verdade. "Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões", defendeu Geisel aos pesquisadores.
Cursos na Inglaterra
O general, apesar de manter a visão corporativa da tropa, disse a historiadora, não se recusou a falar de temas cruciais, como as mortes, durante o seu governo, do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Atribuiu os dois enforcamentos nas dependências da repressão em São Paulo à ausência de comando e diz que o general Ednardo D"Ávila Mello, do II Comando militar em São Paulo, teria abandonado a tropa para atender a convites da alta sociedade de São Paulo. "Ele ia passear no fim de semana, fazendo vida social, e os subordinados dele, majores, faziam o que queriam. Ele não torturava, mas, por omissão, dava margem à tortura."
Em outro trecho do longo depoimento, Geisel diz que não se convenceu do resultado do Inquérito Policial militar (IPM), aberto por determinação do próprio ex-presidente, para apurar a morte de Herzog, mas tinha que aceitar para seguir o rito militar. Naquele momento, porém, suas relações com o general Silvio Frota, comandante do Exército, começaram a ir para o ralo. Geisel não esconde que o clima de desconfiança de que subordinados seus agiam nas sombras, sem seu conhecimento, contaminaram as relações.
Maria Celina ficou, porém, com a impressão de que o general, acostumado a exibir galões na farda militar, se sentia aliviado a cada depoimento, como se tirasse um peso dos ombros. Além dos trechos mais polêmicos, relatou o namoro com Lucy, com quem teve dois filhos, Amália e Orlando, que morreu em acidente de trem em 1957, causando profunda tristeza na família. Divertiu-se dizendo que os jornalistas o procuravam com insistência, desde que deixou o poder, em 15 de março de 1979, passando a Presidência da República ao general João Baptista de Figueiredo, o último militar a presidir o país no ciclo iniciado em 31 de março de 1964. "Atendia, mas não dizia nada."
Na eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, em 1984, Paulo Maluf foi o candidato apoiado por militares, à exceção de Geisel, que deixou claro o apoio a Tancredo e também registradas as suas críticas ao político mineiro. Ferino, o general também não poupava críticas ao voto obrigatório, nem aos bancos, porque não investiam em infraestrutura nem no desenvolvimento.
Relatos da caserna
Os depoimentos de generais, almirantes, brigadeiros, coronéis e tenentes tomados pelos pesquisadores do CPDOC/FGV deram origem aos livros Visões do golpe: a memória militar sobre 1964, Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão e A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura, todos coordenados e organizados por Maria Celina com Celso Castro e Gláucio Soares. Já trechos do depoimento do general Ernesto Geisel deram origem ao Dossiê Geisel, livro editado pela FGV, que se encontra esgotado. Apenas para pesquisadores, a FGV franqueia o acesso aos depoimentos fonográficos e à transcrição completa do depoimento do general, morto em 1996. O testamento em que fala abertamente da vida pessoal e militar e de suas impressões sobre o Brasil e a política foi revisado, página por página, pelo próprio general até 1996, quando morreu, em 12 de setembro, vítima de câncer. A filha, Amália Lucy Geisel, também historiadora, foi quem deu aval para a FGV divulgar o documento.
Fonte: / NOTIMP
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Geisel admitiu que Herzog foi morto por militares
Documento histórico revela: general disse em entrevista a pesquisadores que Exército foi responsável direto pela morte do jornalista.
Mortes à sombra dos quepes
Em trechos inéditos de um depoimento histórico, o ex-presidente Ernesto Geisel defende a tortura e confirma que o Exército matou Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho Carlos Franco
A poucos dias do anúncio dos nomes da Comissão da Verdade responsáveis por desvelar os segredos guardados nos porões da ditadura militar (1964-1985), um pouco das histórias escondidas pela repressão foi trazido à luz por uma entrevista concedida em 1993 pelo general Ernesto Geisel ao Centro de Documentação e Pesquisa (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Quarto presidente a ocupar o Palácio do Planalto depois do golpe de 31 de março de 1964, o "Alemão" confirmou que o regime à época não só praticava a tortura, como foi o responsável direto pelas mortes do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, em 1976. Geisel chegou a confirmar aos historiadores Maria Celina D"Araújo e Celso Castro que, ao contrário da versão oficial difundida à época, Fiel Filho foi, sim, morto por militares: "Num fim de semana, ele (o então comandante do Exército em São Paulo, general Ednardo D"Ávila Mello) não estava em São Paulo e mataram o operário".
O material recolhido pelos pesquisadores, e que deve ser analisado pela Comissão da Verdade, reúne mais de 36 horas de gravações que traçam um panorama da história recente do país. Parte já foi publicada no livro Dossiê Geisel, mas vários trechos permanecem inéditos — como a confissão do assassinato de Fiel Filho pelo Exército. Maria Celina diz ao Estado de Minas que, mais importante do que os depoimentos dos comandantes militares coletados pela instituição — que encerram um ciclo até porque muitos morreram —, é avançar na reconstituição dos aparelhos de terror do Estado.
"Os militares, inclusive Geisel, defenderam a repressão, mas o regime de terror de Estado teve participação ativa da mídia e de empresários. Essa é a história que falta levantar. Espero que a Comissão da Verdade avance nesse sentido", pressiona Celina. Geisel, explica ela, tentou driblar e desmantelar a esquerda e a extrema direita durante o seu governo. "Teve êxito no primeiro combate, pois a esquerda se desmantelou, mas a extrema direita se manteve ativa e operante até o atentado no RioCentro, em 30 de abril de 1981, durante o show do 1º de Maio", esclarece. Faltaria ouvir, portanto, empresários que estão vivos e podem esclarecer o funcionamento das masmorras.
"A sociedade que participou dessa repressão precisa e deve ser ouvida, como ocorreu na Alemanha pós-Hitler e como ocorre hoje na Espanha em relação à ditadura de Franco." Celina está convencida de que, assim, a história será resgatada e de que a anistia estará em xeque e poderá ser revista. "O governo do general João Baptista Figueiredo foi o governo dos órgãos de inteligência e o texto da Lei de Anistia levou em conta essa realidade. "A historiadora não vê esse resgate da memória como sinal de revanche, mas como dever de Estado, em nome da verdade histórica.
Falta de comando Maria Celina contou que não se surpreendeu na manhã de 1993, quando Geisel defendeu a tortura, porque "o fez em nome da corporação, do Exército". Descendente de alemães, o general, que nasceu em Bento Gonçalves (RS) em 3 de agosto de 1907, teve formação luterana e guardava profundo respeito à hierarquia. Ao defender a tortura, tratou de dizer que um grupo de militares aprendeu as táticas na Inglaterra durante o governo de Juscelino Kubistchek de Oliveira e que, para evitar mal maior, a tortura se justificava. A confissão, dita em tom seco, tenta justificar a prática ainda negada pelos militares, e será alvo da revisão histórica da Comissão da Verdade. "Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões", defendeu Geisel aos pesquisadores.
O general, apesar de manter a visão corporativa da tropa, disse a historiadora, não se recusou a falar de temas cruciais, como as mortes, durante o seu governo, do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Atribuiu os dois enforcamentos nas dependências da repressão em São Paulo à ausência de comando e diz que o general Ednardo D"Ávila Mello, do II Comando militar em São Paulo, teria abandonado a tropa para atender a convites da alta sociedade de São Paulo. "Ele ia passear no fim de semana, fazendo vida social, e os subordinados dele, majores, faziam o que queriam. Ele não torturava, mas, por omissão, dava margem à tortura."
Confissões da caserna
Os depoimentos de generais, almirantes, brigadeiros, coronéis e tenentes tomados pelos pesquisadores do CPDOC/FGV deram origem aos livros Visões do golpe: a memória militar sobre 1964; Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão e A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura, todos coordenados e organizados por Maria Celina com Celso Castro e Gláucio Soares. Já trechos do depoimento do general Ernesto Geisel deram origem ao Dossiê Geisel, livro editado pela FGV, que está esgotado. Apenas para pesquisadores, a FGV franquia o acesso aos depoimentos fonográficos e à transcrição completa do depoimento do general, morto em 1996. O testamento em que fala abertamente da vida pessoal e militar e de suas impressões sobre o Brasil e a política foi revisado, página por página, pelo próprio general até 1996, quando morreu em 12 de setembro, vítima de câncer. A filha, Amália Lucy Geisel, também historiadora, foi quem deu aval para a FGV divulgar o documento.
Fonte: / NOTIMP
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