Depois de veto de Lula, aeroporto privado vira realidade com Dilma
Daniel Rittner/ Fábio Pupo .
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva abortou pessoalmente dois planos desenhados por seus auxiliares para abrir os aeroportos para a iniciativa privada. Em 2008, vetou estudos do BNDES para uma eventual privatização da Infraero, sugerida por empresários à então ministra Dilma Rousseff. Em 2009, o governo trabalhou firmemente no projeto de concessão do Galeão e de Viracopos, mas Lula vetou de novo a continuidade das discussões.
"Ele garantiu que honraria o compromisso de não fazer privatizações", recorda um ex-assessor que convivia com o petista no Palácio do Planalto, relativizando a magnitude dos leilões de rodovias federais realizados em sua gestão. Lula não queria perder o eixo do discurso explorado com insistência pelo PT nas últimas campanhas presidenciais: o "sucesso" das intervenções estatais contra o "liberalismo" tucano.
Nos primeiros meses de seu mandato, sob o fantasma de um vexame na Copa do Mundo de 2014 e buscando destravar investimentos necessários para atender a um crescimento da aviação comercial, que atingiu estratosféricos 118% nos últimos oito anos, Dilma decidiu romper um paradigma no PT e comprar a briga com os sindicatos. O resultado será transferir para a gestão privada dois dos aeroportos mais lucrativos do país - Guarulhos e Campinas -, além de Brasília, em leilão marcado para o próximo dia 6.
Segundo o governo, a escolha desses terminais para a concessão ocorreu por concentrarem a maior necessidade de investimentos para os próximos 30 anos para acompanhar a demanda. Hoje, os três aeroportos juntos movimentam 30% dos passageiros, 57% das cargas e 19% das aeronaves do sistema brasileiro.
"Ao fim desse processo, teremos quatro grandes operadoras aeroportuárias concorrendo entre si", explica Marcelo Guaranys, presidente da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) - incluindo na conta a Infraero e ressaltando a regra que permite ao mesmo grupo privado arrematar somente uma concessão.
Influi, nos números, o peso gigantesco do aeroporto de Guarulhos, o mais lucrativo de todos. Ele integra o conjunto de apenas sete terminais lucrativos, de um total de 66 controlados pela Infraero. Considerando custos com depreciação, Guarulhos está no topo do ranking, com resultado líquido aproximado de R$ 190 milhões por ano. Campinas está em quarto lugar - depois de Congonhas e de Curitiba -, com R$ 17,9 milhões. Entre os 59 que dão resultado negativo, está o de Brasília - prejuízo anual de R$ 4,5 milhões.
Por isso, a Anac chegou a conceber um modelo em que aeroportos poderiam ser concedidos em bloco, reunindo lucrativos e deficitários em um mesmo grupo. Avaliava-se que alguns terminais menores, que hoje operam no vermelho, como Florianópolis, poderiam ser rentáveis com um "choque de gestão" da iniciativa privada. No fim, prevaleceu um formato pelo qual operadores privados assumirão os aeroportos mais estratégicos do país.
Guarulhos, o mais superlotado de toda a rede da Infraero, é a principal porta de entrada e saída do país e tenta há quase dez anos tirar do papel seu terceiro terminal de passageiros. Brasília, que também opera acima de sua capacidade, tornou-se um dos maiores centros de distribuição de voos domésticos. Viracopos, aposta do governo para o futuro da aviação brasileira, se transformará no maior aeroporto da América Latina em 2023.
Os vencedores do leilão precisarão entregar as obras da primeira fase dos contratos de concessão em 18 meses, o que inclui novos terminais de passageiros e pátios de aeronaves. "É um cronograma arriscado. Certamente precisaremos executar as obras em três turnos", afirma um alto executivo de uma construtora que participará do leilão.
O dilema das grandes empresas pode ser resumido da seguinte forma: as equipes de engenharia temem enfrentar problemas que ameacem o calendário - e gerem multas de R$ 150 milhões -, enquanto as áreas de novos negócios das empreiteiras veem boas perspectivas de retorno, se o desafio das primeiras obras for superado.
Dilma cercou-se de cuidados, políticos e técnicos, para levar adiante as concessões. Juntou uma equipe de tecnocratas conhecidos no governo pela obsessão por detalhes para tocar o plano. Nenhum deles tem carreira política. O time é encabeçado por um ex-diretor de infraestrutura do BNDES (o ministro Wagner Bittencourt), um ex-diretor do Banco Central (Gustavo do Vale, presidente da Infraero) e um economista de 34 anos, tido por colegas do Planalto como "jovem brilhante" (Guaranys).
Politicamente, o governo tomou o cuidado de banir o termo privatização de declarações públicas ou mesmo de conversas entre assessores. A ideia é enfatizar a diferença com as concessões feitas no governo Fernando Henrique Cardoso, como as de telefonia e as de ferrovias, frisando a participação de 49% da Infraero nas futuras operações de Guarulhos, Campinas e Brasília.
Outra precaução foi conceder uma série de benefícios aos empregados da Infraero. Quem migrar para as concessionárias privadas terá cinco anos de estabilidade e indenização de 1,2 salário por ano trabalhado na estatal.
Até o fim de março, o governo pretende concluir um plano de outorgas, que definirá quais aeroportos serão mantidos pela Infraero e aqueles que serão repassados a governos estaduais ou ao setor privado. É provável que o Galeão (RJ) e Confins (MG) estejam na segunda rodada de concessões, que dificilmente sairá em 2012.
Alexandre de Barros, um ex-diretor da Anac que agora dá aulas de engenharia de transportes na Universidade de Calgary (Canadá), vê um cenário de intensa competição, no médio prazo, entre cinco potenciais aeroportos privados. Brasília e Confins deverão concorrer como "hubs" de voos domésticos. Além de disputar os passageiros nacionais, os aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Galeão vão competir fortemente também pelos voos internacionais, acredita Barros.
Experiência internacional indica aumento das tarifas aeroportuárias
A privatização de aeroportos em outros países reúne uma coleção de experiências que guardam poucas semelhanças entre si. Há casos de venda em definitivo dos ativos (Reino Unido), de contratos de aluguel de terminais inteiros pelas companhias aéreas para gestão própria (Estados Unidos e Canadá), de concessão de toda a rede de aeroportos a uma única operadora (Argentina) e de divisão do sistema em grupos que juntam instalações rentáveis e deficitárias (México).
O modelo brasileiro não é inspirado em nenhum outro caso em particular, mas se aproxima da experiência australiana, na prática. A Austrália concedeu cada um de seus grandes aeroportos - Sidney, Melbourne e Brisbane - a empresas diferentes, que competem entre si por tráfego e para atrair bases operacionais das companhias aéreas, como centros de distribuição de passageiros em conexão. Há uma renegociação tarifária a cada cinco anos, como no Brasil, onde está prevista a aplicação de um "fator-X" para capturar os ganhos de produtividade em benefício dos passageiros. Entre as renegociações, as tarifas australianas são reajustadas de acordo com a inflação, mas é aplicado um desconto equivalente ao percentual de aumento esperado da demanda para cada um dos aeroportos.
Independentemente do modelo seguido, quase todas as experiências levaram ao mesmo lugar: aumento das tarifas aeroportuárias, segundo um estudo feito pela Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata). A entidade, que representa companhias aéreas de todo o planeta, checou a situação de 12 aeroportos internacionais concedidos à iniciativa privada.
O aeroporto de Atenas, por exemplo, erguido por conta da Olimpíada de 2004, chegou a ter um aumento de nada menos que 500% em sua tarifa em relação àquela cobrada pelo aeroporto antigo. No Peru, o aeroporto de Lima foi concedido sob a condição de que a concessionária pagasse royalties de 46% sobre sua receita bruta. O resultado foi o aumento de tarifas para o consumidor e para empresas aéreas.
"A experiência internacional demonstra que não existe uma receita de bolo para a concessão, mas algumas propostas do modelo brasileiro nos preocupam, como a cobrança de taxas sobre a receita de fontes não tarifárias, como os espaços comerciais do aeroporto e o arrendamento das áreas de dutos para abastecimento dos aviões", afirma Carlos Ebner, diretor da Iata no Brasil.
O arrendamento das áreas de combustível, segundo ele, costuma figurar como uma importante fonte de receita complementar do concessionário. Hoje a taxa cobrada da companhia aérea é de 1,1% do volume de combustível comprado. "O que nos preocupa é que isso não é regulado, como acontece com as taxas de embarque, por exemplo. Qualquer movimento de preço nesse tipo de serviço afeta as companhias aéreas, que automaticamente repassam o aumento para o preço das passagens aéreas."
O aprendizado de algumas concessões internacionais, segundo Ebner, também já demonstrou que o sucesso delas está diretamente ligado à capacidade de o concessionário usar parte de sua receita comercial para reduzir o preço das tarifas cobradas pelo aeroporto. "É isso o que torna um aeroporto mais competitivo, mas no modelo brasileiro há o problema de subsídio cruzado", comenta Ebner. "A receita comercial deve ir para um fundo nacional da aviação civil, ou seja, o dinheiro não volta para a melhoria daquele aeroporto, mas é distribuído entre vários."
Nos Estados Unidos, onde quase todos os grandes aeroportos são estatais, há acordos com empresas aéreas para a administração de terminais. Isso faz com que companhias como American, United, Delta e Continental tenham bases operacionais em determinadas cidades. Investimentos em ampliação da infraestrutura, no entanto, costumam ser feitos com dinheiro público.
"A diferença com o Brasil é que, nos Estados Unidos, não há lei de licitações nem concursos públicos. Isso dá, naturalmente, muito mais agilidade para acompanhar a demanda por investimento", diz Alexandre de Barros, professor de engenharia de transportes na Universidade de Calgary e ex-diretor da Anac. Da rede de aeroportos americanos, 33% são operados por autoridades municipais, como Atlanta; 30% por uma autoridade aeroportuária, com representantes de várias instâncias, como Washington; e 6% são geridos por consórcios intermunicipais, como Dallas/Forth Worth, transformado em base de operações da American Airlines.
A divisão da rede de aeroportos por grupos, com terminais rentáveis e deficitários em lotes iguais, foi uma opção estudada pelo governo brasileiro. O objetivo desse modelo, adotado no México, é evitar que apenas aeroportos lucrativos despertem interesse do setor privado e instalações menores deixem de receber investimentos. No caso mexicano, houve divisão em quatro grupos e só o aeroporto da capital, por onde passam 30% de todos os passageiros, continua sendo gerido pelo Estado. Outros 34 aeroportos foram distribuídos em três lotes, concedidos por 50 anos - renováveis por outros 50 - entre 1998 e 2000, com um terminal-âncora por grupo (com 5 milhões de passageiros/ano).
"A lição que podemos tirar do México é que os concessionários concentram seus investimentos nos aeroportos principais. Por mais que a regulação econômica crie incentivos para evitar isso, a tendência do investidor é procurar brechas no contrato para aplicar recursos no aeroporto que realmente lhe dá lucro", reconhece Alexandre de Barros. (DR e AB)
Fonte: / NOTIMP