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Haiti: ONU não tem data para sair

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População nas favelas e acampamentos ainda teme gangues armadas e quer permanência das tropas .

Lourival Santana .

Amanhece no acampamento de Jean-Mary Vincent. Cento e vinte homens do Exército brasileiro cercam a antiga base de helicópteros do extinto Exército haitiano, transformada em campo de desabrigados após o terremoto ocorrido há dois anos. Cento e quatro policiais - 24 haitianos, 30 da Polícia da ONU (Unpol) e 50 da Unidade de Polícia Formada (UFP), composta por estrangeiros, também sob mandato da ONU - entram no acampamento.

É mais uma operação conjunta da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah) e da nova Polícia Nacional do Haiti (PNH), por ela treinada e equipada. Foi desencadeada por queixas de moradores do acampamento - onde vivem 45 mil pessoas - sobre o aumento da criminalidade no local. Martha Pierre, de 44 anos, conta que, uma semana antes, havia criminosos atirando a esmo. Seu sobrinho, Donald Lima, de 22 anos, foi atingido e está hospitalizado.

Todos os moradores que saem da área são revistados. Nenhuma arma ou droga é encontrada. Mesmo assim, no meio da manhã, cinco homens com as mãos amarradas para trás são trazidos na carroceria de uma caminhonete da PNH. Outro permanece deitado de bruços no chão.

"A polícia haitiana prendeu-os como suspeitos, pois não portam documentos e podem estar em algum ato delitivo", explicou o salvadorenho Gabriel Mayorga, membro da Unpol e comandante da operação. "A polícia vai levá-los à delegacia e verificar se têm antecedentes criminais. Temos tido muitos problemas com delinquentes (aqui). Estamos dando um pouco de confiança à população de que estamos aqui para protegê-la."

A Minustah foi criada pelo Conselho de Segurança da ONU em abril de 2004, quando o Haiti estava mergulhado no caos e na violência, dois meses depois de um golpe que depôs o então presidente Jean-Bertrand Aristide. Dez anos antes, num mandato anterior, Aristide, um ex-padre, havia banido o Exército e distribuído armas à população pobre, formando gangues nas favelas, com o discurso de que, se os ricos não quisessem lhes dar comida, podiam tomar à força. Quase oito anos depois, o Haiti ainda não tem condições de cuidar de sua segurança.

A PNH dispõe hoje de 10 mil homens; já a Minustah tem cerca de 12 mil - 9 mil militares e 3 mil policiais. O contingente militar foi acrescido de 2 mil homens em razão do terremoto de 2010. Esse excedente voltará agora, aos poucos, para casa. Mas não há perspectiva de uma retirada total da Minustah.

A população, principalmente das favelas, parece não querer. "Havia muitas gangues aqui antes da entrada da Minustah", lembra Denis Gousse, de 32 anos, líder comunitário de Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, com cerca de 300 mil moradores. "Os militares e policiais da ONU prenderam alguns, e outros fugiram." Dizimadas pela Minustah entre 2005 e 2006, tendo à frente os soldados brasileiros que hoje usam essa experiência nos morros cariocas, as gangues guardaram as armas dadas por Aristide. Muitos moradores das favelas temem sua volta. No ano passado, executaram 31 policiais haitianos. "A população não respeita a PNH", diz Gousse. "A presença da Minustah é necessária."

Essa dependência incomoda analistas haitianos. "Por que a polícia até hoje não é capaz de assegurar a ordem?", questiona a cientista política Suzy Castor. "Houve o terremoto, mas isso não justifica. Há uma ingerência de todo o aparato da ONU na política haitiana que se está convertendo em uma tutela do país. A Minustah anunciou as últimas eleições (de março), protegeu -as e proclamou o vencedor."

"Acreditamos que o mandato da missão da ONU no Haiti precisa ser renegociado com o governo e as outras instituições haitianas, com um cronograma claro para a sua retirada", defende o diretor da Action Aid no Haiti, Jean-Claude Fignolé.

A imagem da Minustah foi manchada pela epidemia da cólera, causada, segundo indícios, pelo derramamento, em 2010, de esgoto de uma base nepalesa no Rio Artibonite, no centro do país, que já matou 6.750 pessoas e infectou mais de 500 mil. Há também denúncias de violações de direitos humanos. Três moradores de Cité Soleil afirmam ter sido surrados e roubados por soldados brasileiros na noite de 13 de dezembro. Gilbert Joseph, de 29 anos, dono de um caminhão de transporte de água, seu sobrinho e ajudante Abel Joseph, de 20, e o estudante Amos Bazile, de 19, mostraram ao Estado marcas de golpes de facões nas costas e nádegas. Dizem que os soldados nada disseram, os detiveram, surraram e levaram 4.500 gourdes (US$ 107) e um celular.

"A Minustah é a pior missão da ONU que já houve no Haiti", condena Pierre Esperance, da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos. "Ela está acima da lei." O comandante da Minustah, general Luiz Eduardo Ramos Pereira, negou as acusações em entrevista ao Estado.

As tropas prestam atendimento médico e tocam projetos sociais e de infraestrutura. O Exército brasileiro fornece material para a varrição de ruas; ajuda na instalação de postes de luz com energia solar, que também carregam celulares; apoia a construção de banheiros coletivos com biodigestores que transformam o esgoto em gás para cozinhas comunitárias; e já asfaltou cinco ruas.

O Exército brasileiro tem aprendido no Haiti o que as Forças Armadas de outros países concluíram amargamente noutras partes do mundo: não basta ser temido; é preciso também ser bem-vindo.

Especialistas questionam retorno geopolítico de presença brasileira no Haiti

O Brasil iniciou suas ações na Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah) em um estilo próprio. Em 2004, a seleção brasileira, que contava com craques como Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho e Roberto Carlos, arrancou sorrisos do sofrido povo haitiano ao desfilar em tanques pela capital, Porto Príncipe, e depois enfrentar a seleção local. Essa partida de futebol sinalizou o início de uma intensa relação entre o Brasil e o Haiti, muito anterior ao terremoto, que devastou o país há dois anos.

Tropas brasileiras buscam colocar em ordem a segurança interna e são uma das únicas instituições de apoio aos haitianos em funcionamento. O contingente hoje é de 2166 militares em três unidades básicas. Mas os retornos geopolíticos que o Brasil buscava quando iniciou as operações são questionados por especialistas.

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Armadilha

Para Gunther Rudzit, coordenador do curso de Relações Internacionais da Faap, do ponto de vista geopolítico o Brasil caiu em uma espécie de armadilha, pois o país viu, na liderança das operações, a chance de se aproximar da ambição de conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. "Tendo em vista que a escolha para um assento de uma futura reforma passa muito mais por um jogo político dentro da geopolítica mundial, não é a credencial militar em missões de paz que vai fazer o Brasil ganhar esse assento", justificou o professor.

A aprovação do Brasil no Conselho de Segurança implicaria, além de uma escolha, na reestruturação da ONU. Segundo o pesquisador de assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de Fora, Expedito Carlos Stephani Bastos, mesmo se isso acontecer, dificilmente o Brasil conseguiria a vaga. "Somos um país ambíguo. O Brasil caminha em direções quase sempre opostas aos principais membros do Conselho", opinou o pesquisador. "Eu acho difícil eles acharem que somos confiáveis nesse ponto. Então (a participação no Haiti) não ajudou, porque não houve essa reforma".

O objetivo de se consolidar como líder regional também não foi atingido pelo Brasil, na opinião de Bastos. "Dizer que o Brasil é líder regional é muito difícil, porque se pegarmos algumas ações de alguns governos vizinhos, teoricamente nossos aliados, percebemos que não temos liderança", disse, referindo-se às barreiras aos produtos brasileiros na Argentina, à declaração da nacionalização da Petrobrás pela Bolívia e a medidas de apoio que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, tem na região. "Então essa missão não fortaleceu liderança, mas mostrou que o Brasil teria capacidade de liderar missões de paz". Já Rudzit pondera que a responsabilização brasileira nas operações e até mesmo no fluxo migratório que se inicia do Haiti para o Brasil se dá justamente pela liderança regional do país.

Experiência nos morros

Não há como dizer que tudo foi em vão. Além de o Brasil desempenhar importante papel na estabilização do Haiti, importamos as capacidades desenvolvidas na liderança de missões para as operações de pacificação dos morros cariocas. "A necessidade de equipar veículos, se proteger melhor, de desenvolver determinados equipamentos, tudo isso foi fruto da experiência lá", reconhece Bastos. "Mesmo não sendo um ganho geopolítico, eu acho que isso foi fundamental, principalmente para o exército", completou Rudzit.

Se o início da relação entre Brasil e Haiti foi consagrada por um amistoso entre as seleções, a retirada das tropas brasileiras pode ser um pouco mais dolorosa. Que o povo haitiano precisa de ajuda, não há discórdia. Mas a permanência do Brasil no país pode sair cara de mais. "Eu acho que se houver essa retirada completa, o Haiti corre um grande risco de sofrer uma desestabilização muito grande. E aí, como fica a situação brasileira?", questionou Rudzit.

Ainda segundo Rudzit, apenas uma resolução do Conselho de Segurança poderia assegurar ao Brasil uma saída mais tranquila do Haiti. "Porque aí o Brasil estaria cumprindo um mandato da ONU. Mas se a ONU perceber que a retirada (do Brasil) vai desestabilizar o Haiti, o Brasil terá de ficar lá por muito tempo", disse.

Bastos considera que apenas as primeiras operações, entre 2005 e 2007, foram de grande relevância. "Depois disso, acho difícil obter um resultado completo", analisou. "O problema do Haiti é você criar uma estrutura que dê trabalho e consiga transformar aquele lugar de novo em um país. Eu acho que o retorno não foi tão grande assim, até porque o Brasil tem diversos Haitis e quem está resolvendo esses problemas nos nossos Haitis?"

Fonte: / NOTIMP









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