Obama, o Brasil e o Conselho de Segurança
Roberto Abdenur.
É usual, no contexto da preparação de visitas internacionais, a troca pela imprensa de "recados" entre uma parte e outra. Serve isso para ventilar desde logo certas tendências ou mesmo posicionamentos já cristalizados quanto à agenda das conversações a se darem durante a viagem. Merece atenção, a esse respeito, matéria saída na edição deste jornal do último dia 8 de fevereiro. Nela a correspondente em Washington afirma que o presidente Barack Obama não quer o Brasil no Conselho de segurança da ONU (CSNU). Segundo fonte do Departamento de Estado, o Brasil teria cometido um "pecado mortal", uma "burrada", ao se opor às sanções aprovadas pelo conselho contra o Irã. Diante disso, quando da visita ao País, em março, Obama só por "milagre" virá a apoiar o pleito brasileiro por assento permanente no CSNU.
O tema merece detida avaliação, pois não deixa de ter algum impacto sobre o relacionamento bilateral, ainda que não constitua condição sine qua non para avanços que são, por sinal, de profundo interesse para ambas as partes. E porque, para além disso, envolve decisões que dizem respeito a como conseguirá a comunidade internacional melhor se organizar para enfrentar os ingentes desafios que se lhe apresentam em numerosas questões de ordem econômica, ambiental, energética, política e de segurança. Um importante antecedente vem desde logo à baila: abandonando a postura de silêncio sobre a questão da ampliação do CSNU, em sua recente viagem a Nova Délhi o presidente Obama desdobrou-se em loas à Índia, cuja candidatura ao conselho endossou plenamente.
E o fez ao formalizar-se inédito acordo de cooperação nuclear entre os Estados Unidos e o país que se tornou potência nuclearmente armada ao arrepio do Tratado de Não Proliferação. Foi a Índia, na ocasião, consagrada como parceira estratégica dos Estados Unidos. Subjacente a esses ousados passos esteve o interesse dos Estados Unidos em respaldar aquele país como contrapeso ao crescente poderio econômico, político e militar da China. Assim é a Realpolitik, há que compreender (como, de resto, fez agora, de sua parte, o governo brasileiro, outrora profundamente crítico da bomba indiana).
O que vem ao caso, com vista à presença de Obama em Brasília, é o fato de que o presidente norte-americano passou a admitir o princípio da ampliação do CSNU - e aí se faz indispensável que Washington proceda a uma cuidadosa, serena e objetiva análise do "caso brasileiro". Para começo de conversa, não faz sentido que, sobre assunto de tão amplas implicações internacionais, se deixe o governo dos Estados Unidos levar pelo inconformismo com o voto brasileiro no caso iraniano. Salta aos olhos que a atitude do governo Lula constituiu fragorosa anomalia, no sentido de que não estava em jogo, no caso, nenhum interesse nacional.
Aquela desventurada aventura constituiu grave - mas momentâneo, passageiro - desvio das diretrizes históricas da diplomacia brasileira. Trata-se de episódio isolado e superado, que de modo algum representou alteração de rumos na trajetória do País no plano internacional. O que, sim, vem mudando, e muito rapidamente, na trajetória do País é sua ascensão à condição de ator relevante, em não poucos casos até decisivo, ao largo do amplo espectro de problemas internacionais (e globais) cujo encaminhamento está a exigir pronta reconfiguração dos sistemas decisórios nas Nações Unidas e em outros foros.
É preciso que os Estados Unidos reconheçam, na devida medida, a virtual singularidade do que chamo de "caso brasileiro". Diferentemente da Índia - e da China, e da Rússia, e dos próprios Estados Unidos -, é o Brasil o único país de dimensões continentais, vultosa população e grande e dinâmica economia a situar-se fora (e até longe) dos contextos de tensão geopolítica que marcam outras regiões do mundo. Será que os Estados Unidos estariam agora adotando como critério para seu apoio a uma entrada no CSNU a posse da bomba? Se assim for, o Brasil decididamente não terá jamais títulos para um assento permanente no conselho (nem o terão outros candidatos fortes, como a Alemanha e o Japão). O que singulariza o Brasil é, ao contrário, o fato de viver em região privilegiadamente pacífica, livre de armas de destruição em massa e onde praticamente inexistem riscos de conflitos. Esse privilégio foi em não pequena medida o fruto de mais de um século de hábil e lúcida diplomacia, de resto correspondida por nossos vizinhos.
Mas a diplomacia brasileira nunca esteve confinada ao Hemisfério ou à América Latina. Mesmo antes de lograr a estabilidade democrática e o vigor econômico que agora usufrui, teve desde sempre o Brasil voz ativa e considerável influência nos debates sobre questões de comércio, economia e finanças, desarmamento, não proliferação e variadas outras questões envolvendo a paz e a segurança internacionais. Muito concretamente, tem atuado como bridge builder entre diferentes regiões e fator de conciliação e entendimento em múltiplos foros de toda ordem. Obama, ainda que seguramente popular em nosso país, não é santo nem precisa fazer "milagres" na visita a Brasília.
Basta-lhe refletir mais detidamente sobre o que significa - e cada vez mais significará como ator decisivo no plano internacional - o Brasil como economia, nação e Estado. Tal reflexão deveria incluir, no plano propriamente bilateral, a constatação de que houve em anos recentes uma mudança na natureza mesma do relacionamento Brasil-Estados Unidos. Uma nova dinâmica, de crescente mutualidade, vai criando fortes vínculos de entrelaçamento e interdependência: do que decorre substancial ampliação da área de convergência e entendimento, por sobre diferenças pontuais de pontos de vista. A conclusão lógica de uma tal reflexão será o reconhecimento de que o endosso à candidatura brasileira ao conselho só faz consultar os melhores interesses da comunidade internacional - aí incluídos, claro está, também os dos Estados Unidos.
Fonte: O ESTADO DE SÃO PAULO / NOTIMP