O brasileiro que Kadafi trocou por um arsenal
Em 83, ele foi envolvido no caso dos aviões líbios cheios de armas que pousaram no País.
Abril de 83, "Estado" revela aviões de Kadafi no Recife e Manaus.
Roberto Simon.
Uma sensação de déjà vu bateu em Adauto Pereira, geólogo de 55 anos veterano da Petrobrás, enquanto ele acompanhava na semana passada a epopeia dos brasileiros que tentavam deixar a Líbia. Nos anos 80, ele próprio foi um "quase refém" de Muamar Kadafi, durante o episódio mais obscuro da relação Brasil-Líbia. Os tempos eram outros: o hoje cambaleante ditador de botox armava terroristas e conspirava contra o Ocidente, no auge de sua fase "cachorro louco do Oriente Médio", como o descreveu à época o então presidente americano, Ronald Reagan.
Adauto vivia em Trípoli em 17 de abril de 1983, dia em que quatro aviões líbios da companhia Jamahiriya pousaram no Brasil. Oficialmente, as aeronaves levavam "suprimentos médicos" para vítimas de um terremoto na Colômbia. Mas, quando a aeronáutica abriu a carga para vistoria, descobriu fuzis, mísseis e até um caça desmontado. O destino das armas era a Nicarágua comandada pela guerrilha sandinista, aliada a Cuba.
Os aviões de Kadafi (três Ilyushins de fabricação soviética retidos em Manaus e um Hércules C-130 americano, com avaria na turbina, no Recife) colocaram o governo de João Batista Figueiredo em uma sinuca de bico. De um lado, Reagan, que tentava frear a todo custo guerrilhas de esquerda na América Central, passou a pressionar o Brasil pela apreensão de todo o material. De outro, a Líbia, cliente da indústria bélica brasileira desde os anos 70, ameaçava rasgar um contrato de venda de cem aviões tucanos - cada um a US$ 15 milhões. E o Adauto lá em Tripoli.
"Estávamos isolados do mundo. Quando o Kadafi esquecia de pagar a conta do satélite, ficávamos incomunicáveis", relembra ele. Para saber da vida fora da Líbia, as 15 famílias de brasileiros usavam rádios de ondas curtas. Notícias sobre futebol, vinham da Rádio Globo. Sobre política, da BBC. Mas Adauto preferia usar seu Sony preto, um tijolão de 40 centímetros de largura assentado sobre a mesa da sala, para escutar Pink Floyd.
Num fim de tarde qualquer, o geólogo ouviu a história estranha sobre armas da Líbia apreendidas no Brasil, quando buscava sua filha de 5 meses na casa de uma outra família de brasileiros. Mau pressentimento. No dia seguinte, no escritório da Braspetro - subsidiária da Petrobrás que perfurou seis poços na Líbia nos anos 80 -, Adauto foi convocado para uma reunião à noite na casa do gerente-geral da empresa em Trípoli. No encontro, foi relatada a história completa e dada a ordem para que se agisse normalmente, sem falar sobre o assunto com ninguém.
Quando o escândalo veio à tona, Kadafi fez dois discursos importantes. No primeiro, censurado na Líbia, culpou os pilotos líbios por terem "mentido às autoridades amigas brasileiras". No segundo, fez saber que aplicaria ao caso seu ameaçador princípio de reciprocidade: o que fizessem com líbios no Brasil seria feito com brasileiros na Líbia.
"Fui imediatamente para o aeroporto e despachei minha mulher e minha filha no primeiro voo", relembra o geólogo. "Sozinho, eu poderia fugir pelo deserto se acontecesse alguma coisa."
Os brasileiros - como todos os estrangeiros no país - sabiam que eram espionados o tempo todo pela inteligência líbia. Quando se tirava o telefone do gancho, dava para ouvir do outro lado a máquina que gravava as conversas. A solução, então, era falar sobre o assunto em códigos. "Zé das Couves" era um dos vários codinomes de Kadafi.
Bastidor. No Brasil, o governo Figueiredo matutava uma saída que não abalasse as relações com Washington, nem os negócios com Kadafi, nem a posição neutra do Itamaraty diante dos conflitos da América Central. Daniel Ortega, presidente da Nicarágua na época (e hoje também) falou diretamente com o general-presidente para convencê-lo a liberar a "doação" de Kadafi. O líder do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara, Ayrton Soares, criticou Figueiredo, "velho aliado de Reagan". Setores militares alardeavam informalmente a repórteres o rastilho da "cubanização" da América Central até o Suriname, na fronteira com Brasil.
"Mas se Kadafi realmente fosse nos tratar como os líbios estavam sendo tratados no Brasil, estaríamos feitos", brinca hoje Adauto. Os 38 tripulantes que estavam em Manaus foram colocados no luxuoso Hotel Tropical. Os que estavam no Recife viraram hóspedes do Hotel Boa Viagem - o capitão na suíte presidencial -, com direitos a duvidosas escapadas noturnas "regadas a álcool, algo estritamente proibido no rigoroso código do Islã", conforme reparou o repórter do Estado que cobria o caso.
Com as negociações entre Figueiredo e Kadafi em curso, a pressão sobre os brasileiros na Líbia arrefeceu e Adauto afastou os planos mirabolantes de fuga pelo deserto. Cinquenta dias após o início da crise, a diplomacia brasileira acertou com a Líbia que não confiscaria o armamento, mas os aviões teriam de retornar diretamente para Trípoli. As aeronaves fariam o trajeto "em fila": só quando a primeira pousasse na Líbia, a segunda decolaria do Brasil e assim sucessivamente, garantindo que nenhuma se desviasse rumo à Nicarágua. E a vida de Adauto voltou ao normal na Líbia, país onde viveu até 1985 - meses antes de os EUA bombardearem Trípoli, em retaliação a um atentado na Alemanha Ocidental que matou dois soldados americanos.
Orgulhoso, o geólogo que hoje é conselheiro da Petrobrás diz que "não teve grande preocupação" com os brasileiros que tentavam fugir nos últimos dias, em meio a combates entre opositores e forças de Kadafi. "Logo percebi que é uma guerra interna e os estrangeiros, em geral, não são o alvo", explica. "Claro que pode acontecer um acidente. Mas o risco de se levar uma bala perdida lá é menor do que no Rio", diz ele, que mora em Laranjeiras.
Fonte: O ESTADO DE SÃO PAULO / NOTIMP