Rio: Pacto contra o tráfico
Constrangido em ceder a facções, governo uniu forças para libertar área em que ergueu teleférico.
Detalhes da operação de guerra montada para retomar o Complexo do Alemão, no Rio, revelam que a invasão das forças de segurança não cumpriu apenas objetivos operacionais, mas também políticos.
A união incomum de forças militares e civis buscava algo além de libertar uma comunidade dominada pelo medo. Foi o momento escolhido para que os governos se livrassem do constrangimento de ter de pedir licença a criminosos para inaugurar investimentos de quase R$ 2 bilhões – incluindo um teleférico planejado para ser o símbolo da luta contra o narcotráfico, a exemplo do que ocorreu na Colômbia.
Desde 2005, um plano para tomar o Alemão de assalto – e que estava previsto para virar realidade só em 2012 – era mantido em uma gaveta do Palácio da Guanabara. Em uma reunião da cúpula do governo estadual realizada quarta-feira, 24 de novembro, o secretário de segurança do Rio, José Mariano Beltrame, e o governador Sérgio Cabral decidiram que era hora de colocá-lo em prática.
Para isso, foi decisiva a audácia das ações praticadas pelos bandidos. Mas também pesou a possibilidade de abreviar o caminho para um dos principais projetos dos governos estadual e federal para o Rio: a transformação do complexo de favelas em vitrine da política de segurança até a Copa do Mundo 2014, com legado para a Olimpíada de 2016.
– A segurança é prioridade até a Copa, e essas favelas (pacificadas) estão definidas como cartão-postal a ser apresentado ao mundo por Lula e Cabral – revela um petista gaúcho com trânsito no governo federal.
Nessa reunião, Beltrame redigiu um documento ao Ministério da Defesa, solicitando o emprego de blindados da Marinha. Depois, elaboraria um pedido de reforço de tropas. Tratava-se de uma formalidade, já que, por telefone, governador e presidente haviam concordado com a realização de uma ação conjunta para liberar os complexos da Penha e do Alemão.
– O presidente determinou o apoio ao ministro Jobim (Nelson Jobim, da Defesa), que estabeleceu a diretriz para os comandantes das forças armadas – afirma um funcionário do Ministério da Defesa.
O emprego das forças armadas é um tema sensível tanto para os militares, temerosos de eventuais desgastes na imagem das corporações, quanto para governos estaduais que costumam considerar esse tipo de socorro uma admissão de incapacidade. A facilidade com que o acerto foi feito é atribuída à sintonia política entre Lula e Cabral, mas pode ser explicada pelo contexto envolvendo o Alemão.
Nos últimos meses, a situação do conglomerado de favelas provocava crescente desconforto nos palácios do Planalto e da Guanabara. Afinal, mesmo com R$ 721 milhões já investidos na área e outros R$ 1,3 bilhão a caminho dos complexos do Alemão e da Penha para urbanismo e saneamento, a equipe de segurança presidencial era constrangida pela necessidade de tolerar e se adequar à influência de traficantes para que Lula pudesse inaugurar obras do PAC.
Cabral avisou Lula de que ele poderia inaugurar a obra
A principal delas é o teleférico em fase final de construção, inspirado em um modelo erguido em Medellín, na Colômbia, e que se transformou em uma espécie de monumento à vitória sobre o narcotráfico daquele país.
– Normalmente, o tráfico se retrai quando há uma cerimônia oficial nos morros do Rio. Depois, a polícia vai embora e continua como antes – comenta a socióloga Julita Lemgruber.
O problema é que, para o sucesso do projeto capitaneado pelo teleférico, desta vez o tráfico deveria ser expulso. A sensação de fortalecimento dos traficantes e a insatisfação com a política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) estariam dificultando até mesmo antigos acordos tácitos entre autoridades e o crime organizado. Para eliminar o domínio do tráfico sobre a comunidade, faltava costurar os termos da invasão. Houve duas exigências principais nas negociações: uma delas, do ministro Jobim, era que o Rio admitisse formalmente a incapacidade de lidar com a situação por conta própria. A outra, a ser cumprida pelo Exército, era barrar a participação de aspirantes e dar preferência a militares com histórico de atividade no Haiti. Ambas foram atendidas.
Graças ao sucesso da empreitada, a Penha e o Alemão foram libertados do tráfico, e a região queimou etapas para se tornar o principal exemplo da nova política de segurança do país. O sentimento foi resumido em um telefonema dado por Cabral a Lula logo depois da reconquista do complexo de favelas, quando bandeiras do Brasil e do Rio foram cravadas sobre o teleférico, área até então sob domínio de uma facção criminosa. O governador anunciou ao presidente:
– O senhor vai poder inaugurar e passear no teleférico, no próximo dia 21, sem se preocupar com traficantes.
Fonte: ZERO HORA, via NOTIMP