Rio: A guerra começa a ser vencida
Ao retomar o controle de uma das principais trincheiras do tráfico no Rio de Janeiro, o estado dá um passo decisivo para vencer a bandidagem que ganhou poder sob a complacência de populistas.
A batalha do bem contra o mal foi mais uma vez travada no Rio de Janeiro - agora, com tintas de Armagedon. A cena de carros blindados da Marinha adentrando a favela de Vi1a Cruzeiro, no bairro suburbano da Penha, um símbolo do poderio do tráfico no Rio de Janeiro, marcou, na quinta-feira passada, um momento histórico do combate ao crime na cidade. Ali, onde a bandidagem havia montado seu principal centro de distribuição de drogas, armas e munição para morros cariocas, o estado mostrou, finalmente, quem detém o monopólio da força.
Para alívio dos moradores da região, que enfrentavam um cotidiano de terror sob o jugo dos traficantes, policiais e fuzileiros navais retomaram o controle do território. A libertação de Vila Cruzeiro foi a maior operação policial já realizada no Rio de Janeiro. E mais estar por vir. Na última sexta-feira, o vizinho complexo de favelas do Alemão, para onde os marginais fugiram como um bando de ratos atordoados, encontrava-se cercado por centenas de homens das polícias Militar e Civil do estado e da Polícia Federal.
Suas saídas estavam bloqueadas por 800 homens do Exército, muitos deles veteranos do Haiti, e vigiadas por helicópteros da Aeronáutica. A invasão do Complexo do Alemão é iminente. Com isso, espera-se, o poder desproporcional do crime organizado, que cresceu como um tumor maligno irrigado pelo populismo de governantes irresponsáveis, terá um de seus epílogos. Faltam muitos outros.
Dois deles mancham a magnífica paisagem carioca: as favelas do Vidigal e da Rocinha, que volta e meia são sacudidas por guerras de traficantes, espalhando o terror pela Zona Sul. "A retomada de Vila Cruzeiro é um caminho sem volta", garante o secretário de Segurança José Mariano Beltrame.
O estopim para a invasão das favelas na Penha foi a série de ataques, em toda a cidade, comandados por criminosos que lá se encastelavam. Na semana passada, o bando lançou granadas às ruas, ateou fogo a carros e ônibus e promoveu arrastões, espalhando o medo entre a população e aumentando a dúvida sobre a capacidade do Rio de sediar com segurança os jogos da Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.
O "novembro negro", como se referiam os marginais à onda de ataques, em diálogos interceptados pela polícia, foi planejado para tentar deter a ocupação paulatina e permanente dos morros e favelas da cidade, por meio da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Pelo jeito atordoado com que fugiram de Vila Cruzeiro, eles não esperavam o golpe desferido à la Capitão Nascimento, o personagem do cinema que elevou os soldados do Batalhão de Operações Especiais (Bope) a condição de heróis populares. Ao todo, estão em prontidão, no Rio de Janeiro, 21.000 policiais.
Foi numa "sala de guerra" na Secretaria de Segurança, onde estavam presentes a cúpula da polícia e o governador Sérgio Cabral, que se decidiu pela invasão de Vila Cruzeiro. Se não fossem os carros blindados cedidos pela Marinha, ela não teria acontecido com o grau de sucesso alcançado. Ao esmagarem obstáculo colocado pelos traficantes em ruelas estratégicas (blocos de concreto, restos de trilhos de trem e até carros e um caminhão queimado), os blindados fizeram em quatro horas um trabalho que poderia levar uma semana.
Com a invasão, o Rio, o Brasil e o mundo puderam ter uma ideia mais clara da magnitude do crime organizado: o grupo que fugiu de Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão era formado por cerca de 200 homens, com armas de guerra nas mãos. Outros dez foram mortos no confronto com o Bope. A maior parte dessa escória conseguiu escapulir, porque, naquele momento, não havia efetivo suficiente para ocupar Vila Cruzeiro e, ao mesmo tempo, apanhar os criminosos do outro lado do morro que separa a favela invadida do Complexo do Alemão. Mas eles não perdem por esperar.
Maior conjunto de favelas do Rio, com 120.000 habitantes, o Complexo do Alemão reúne cerca de 1.500 bandidos armados com 300 fuzis. Pelo arsenal bélico, pela dimensão e por sua geografia intrincada, com um conjunto de morros entrecortados por centenas de vielas labirínticas, o lugar impõe à polícia um grau de dificuldade maior do que qualquer outro na cidade.
O governo do estado já havia anunciado o plano de fincar no Alemão uma UPP, a exemplo do que se deu em outras treze favelas do Rio. Mas não havia estabelecido data para isso acontecer, porque seria necessário contar com um contingente fixo de 2.200 agentes treinados - quase dez vezes o número presente na maior UPP hoje existente, a da Cidade de Deus, na Zona Oeste carioca. A onda de ataques obriga, agora, o estado a apressar a ocupação do Complexo do Alemão. Boa parte dos 3.500 novos policiais que deverão se formar em 2011 poderá ser deslocada para lá.
Ninguém de bom-senso discorda de que a iniciativa de libertar territórios controlados por criminosos seja um avanço e tanto. A experiência internacional mostra que eliminar a presença de traficantes armados, que impõem suas regras na base da coerção e da violência, é o primeiro movimento a ser feito no combate ao crime organizado. Nas co1ombianas Bogotá, Medellín e Cali, essa estratégia funcionou bem. As UPPs seguiram o modelo da Colômbia, mas guardam uma diferença em relação a ele.
Nas cidades daquele país, os quartéis generais dos chefões do tráfico foram tomados logo nas primeiras operações, a partir de 2002, e os criminosos acabaram presos. No Rio, as principais trincheiras dos facínoras ficaram intocadas, enquanto o estado empreendia a ocupação de favelas menores e periféricas no mercado de entorpecentes. Com isso, os chefões seguiram fazendo negócios - agora auxiliados pelos bandidos das favelas tomadas que se refugiaram em seus domínios. Para se ter uma ideia, só no último ano, o número de criminosos alojados no Complexo do Alemão triplicou.
Essa cambada perdeu o território, mas continua a comandar o tráfico em seus antigos domínios. O comércio passou a ser mais velado e, quem sabe, um pouco menos lucrativo. Carregamentos de entorpecentes, que antes desembarcavam nos morros em enormes lotes à luz do dia, passaram a ingressar nas favelas ocupadas por UPPs por um exército de formigas, que transporta a droga aos poucos. Afirmam a Veja dois agentes do departamento de inteligência da polícia:
"Sabemos que, em onze das treze favelas pacificadas, o comércio de drogas praticamente não foi afetado". É uma razão para explicar a falta de resistência às investidas da polícia: as ações oficiais não haviam atingido um reduto verdadeiramente lucrativo para o tráfico. Nesse sentido, a tomada de Vila Cruzeiro, do Complexo do Alemão e, posteriormente, do Vidigal e da Rocinha dará uma visão mais realista acerca da eficiência das UPPs.
Ao iniciarem a política de ocupação gradual das favelas, as autoridades subestimaram a capacidade de articulação dos bandidos. Elas apostavam num cenário em que, uma vez expulso de seu território, os bandidos acabariam guerreando por espaço e se enfraqueceriam. Ocorreu o contrário. Sabe-se que foram duas facções rivais, Comando Vermelho e Amigos dos Amigos, que uniram forças para instaurar o terror na cidade. ""É um fato inédito e preocupante: juntos, os criminosos aumentam seu poder econômico e bélico", avalia o ex-capitão do Bope Paulo Storani.
Dois motivos, basicamente, estão por trás dessa aliança. O primeiro é de cunho econômico - a iminência da ocupação pela polícia de favelas realmente lucrativas para o tráfico. O segundo está relacionado à transferência de chefões do Comando Vermelho para presídios federais fora do Rio de Janeiro e longe, portanto, de seus QGs. Desde 2007, 62 desses bandidos foram removidos para outros estados.
Segundo uma investigação da Polícia Federal, os ataques pela cidade são também uma reação do traficante Fernandinho Beira-Mar. Preso em Mato Grosso do Sul, ele pleiteava junto ao Superior Tribunal de Justiça a mudança do regime de segurança máxima para o de cárcere comum, além da anulação de processos a que ele responde. Duas semanas atrás, com a decisão judicial desfavorável, ele teria dado o sinal verde para que seu bando e aliados barbarizassem o Rio.
Todo o episódio lança luz sobre as fragilidades da segurança pública brasileira. Uma delas diz respeito ao conjunto de leis lenientes com criminosos perigosos, que lhes garantem relaxamento da pena e ainda certas regalias como, por exemplo, visitas de advogados e parentes sem nenhum monitoramento. Os bandidos tiram proveito dessas situações para transmitir ordens às facções que continuam a comandar de dentro dos presídios.
Outro problema é a falta de coordenação entre as esferas de polícia, que raramente compartilham informações e estratégias. Atenta o coronel José Vicente, ex-secretário nacional de Segurança Pública: "Não dá para combater o tráfico no Rio de Janeiro como se fosse um problema isolado. Drogas e armas percorrem um longo caminho por todo o país até chegar ao ponto de venda".
Atualmente, os traficantes dominam 450 das 1.020 favelas cariocas. Nelas, são vendidas 20 toneladas de cocaína por ano. A ausência do poder público redundou em absurdos: no Complexo do Alemão, os operários encarregados das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) precisavam obedecer às regras dos chefões. A cada dia, eles removiam uma coleção de estacas de ferro encravadas nas principais entradas das favelas para impedir a passagem dos carros de polícia. No fim do expediente, porém, eram obrigados a recolocá-las.
A libertação de Vila Cruzeiro - e, se tudo der certo, do Complexo do Alemão - representa o rumo certo. É preciso descer de uma vez por todas a mão de ferro do estado sobre o crime organizado. A imagem dos bandidos fugindo atordoados é mostra de que talvez eles tenham começado a desorganizar-se. O bem tem tudo para vencer o mal.
Fonte: REVISTA VEJA, via NOTIMP