Queda de braço
Um dia depois de Brasil e Turquia fecharem acordo com o Irã para a troca de urânio enriquecido, Estados Unidos levam projeto de sanções ao Conselho de Segurança. Embaixadora brasileira abandona a reunião
Isabel Fleck
No dia seguinte ao anúncio do acordo conseguido pelos governos brasileiro e turco sobre a troca de urânio iraniano, Estados Unidos e Brasil ensaiavam ontem uma queda de braço no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Washington ignorou o avanço obtido e convocou uma reunião de emergência para discutir o rascunho de um projeto estabelecendo mais uma rodada de sanções ao Irã. O texto tem 10 páginas e, segundo a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, teria sido aceito pela China e pela Rússia. Ele prevê restrições até ao Banco Central do Irã.
A representante do Brasil, que ocupa uma cadeira não permanente no conselho, abandonou a reunião. “O Brasil não vai participar neste momento, porque sentimos que existe uma nova situação. Houve um acordo muito importante”, disse a embaixadora Maria Luiza Ribeiro Viotti. Na mesma hora, em Brasília, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmava à imprensa que “não colocaram na balança as coisas que o Lula falou”. O chanceler brasileiro negou, no entanto, que o acordo fechado pelos três países tenha sido “ignorado” pelo grupo “cinco mais um” (EUA, França, Reino Unido(1), Rússia, China e Alemanha). Sobre as sanções, o ministro afirmou que, se for apresentada uma resolução com esse teor, “haverá uma reação” do Brasil.
Amorim e o colega turco, Ahmet Davutoglu, estão redigindo uma carta para enviar aos membros do Conselho de Segurança, na qual ressaltarão que a base do acordo assinado domingo é a própria proposta apresentada pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) no ano passado. “É o acordo que eles propuseram”. Para o chanceler, não há razões para duvidar de que o programa nuclear do Irã tenha objetivos civis, embora “às vezes erremos ao julgar as intenções do outro”. “Até os namorados às vezes desconfiam”, comparou.
Jogo duro
O rascunho levado pelos EUA ao conselho propõe que os países-membros proíbam a abertura de novas agências ou escritórios de representação de bancos iranianos que estejam “vinculados a atividades de proliferação nuclear”. Também exige vigilância sobre as transações bancárias, inclusive do Banco Central do Irã, para “evitar que contribuam para a proliferação de atividades nucleares sensíveis ou para o desenvolvimento de sistemas para o lançamento de armas atômicas”.
O texto prevê inspeções em navios “suspeitos” de transportar cargas relacionadas ao programa nuclear iraniano. Porém, segundo a agência chinesa Xinhua, que cita “fontes diplomáticas”, o rascunho “reflete uma estratégia de duas vias” e abre uma brecha para negociações ao “apoiar e encorajar os esforços diplomáticos”.
Mais cedo, na Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, Hillary anunciara um acordo sobre as sanções com China e Rússia. Segundo a secretária, seria uma “resposta convincente” aos esforços realizados no Irã durante os últimos dias. “Ainda há uma série de perguntas sem resposta sobre o anúncio que veio de Teerã. (…) O grupo cinco mais um e a União Europeia estão reunindo a comunidade internacional em nome de uma resolução com sanções fortes, que envie uma mensagem inequívoca sobre o que se espera do Irã.”
O assessor do presidente Lula para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, disse em Madri que a decisão de insistir nas punições colocaria os EUA em má situação. “Se optarem pela sanção, vão se dar mal. Vão sofrer uma sanção moral e política”, afirmou. Ele ainda sugeriu que o “normal e desejável” seria que Brasil e Turquia se reunissem com o grupo “cinco mais um”.
1 - Embaixador faz ressalvas
Em Brasília, o embaixador do Reino Unido, Alan Charlton, disse que o acordo entre Irã, Brasil e Turquia é “bem-vindo”, mas o caminho até uma solução de fato “ainda é bastante longo”. “O próximo passo deve ser o contato do Irã com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). E tem vários outros pontos a serem discutidos; por exemplo, nós acreditamos que o Irã continua a enriquecer urânio”, afirmou. Charlton lembrou que a ideia da troca foi da própria AIEA, para “dar mais confiança para a comunidade internacional”. Ele, no entanto, destacou o papel desempenhado pelos dois países em desenvolvimento. “A Turquia e o Brasil são parceiros muito importantes da Europa e dos Estados Unidos, e há um papel para cada país nessas questões”. O embaixador ainda garantiu que o Reino Unido “sempre apoiou a ideia de o Brasil se tornar membro permanente do Conselho de Segurança”, e que isso não mudará com o novo governo britânico.
O grupo ‘cinco mais um’ e a União Europeia estão reunindo a comunidade internacional em nome de uma resolução com sanções fortes” Hillary Clinton, secretária de Estado norte-americana
O Brasil não vai participar neste momento, porque sentimos que existe uma nova situação. Houve um acordo muito importante” Maria Luiza Ribeiro Viotti, representante do Brasil na ONU
Teerã tem pressa
O governo do Irã declarou ontem que vai informar a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) sobre a proposta firmada com o Brasil e a Turquia “por escrito, pelos canais habituais”. O regime de Teerã, entretanto, pediu que EUA, França, Rússia e a própria AIEA, que compõem o Grupo de Viena, “apresentem rapidamente” disponibilidade para aprovar a troca do urânio iraniano via Turquia. “Uma vez assinado, o acordo vai preparar terreno para uma cooperação nuclear mais ampla e mudará o clima entre o Irã e as grandes potências”, disse o porta-voz da chancelaria iraniana, Ramin Mehmanparast.
No Irã, a receptividade ao acordo também foi maior do que se esperava. O presidente do Majilis (Parlamento), Ali Larijani, que em outubro passado foi contrário à proposta do grupo de Viena, apoiou o texto anunciado na segunda-feira, que prevê a troca de 1.200kg de urânio levemente enriquecido por 120kg de combustível a 20%. “É necessário que as posições de todos se aproximem e que os países se comprometam em uma só voz com esse caminho justo”, declarou Larijani, um político muito próximo ao líder religioso supremo, o aiatolá Ali Khamenei. Classificado como um “conservador pragmático”, ele já foi o chefe dos negociadores iranianos para a questão nuclear.
De acordo com a agência iraniana Irna, 234 dos 290 deputados do Majlis assinaram um comunicado de apoio ao acordo entre Irã, Brasil e Turquia. O gesto confirma que mesmo a oposição reformista, que contesta a legitimidade do presidente Mahmud Ahmadinejad, cerra fileiras em defesa do que considera um direito do país. “A atividade nuclear pacífica é considerada um patrimônio nacional, e cabe a todo o povo iraniano protegê-la”, diz o texto. Os parlamentares apresentam o acordo de Teerã como “base positiva” para o diálogo, e acusa a “arrogância global” — termo usado no Irã para referir-se às grandes potências em geral, e aos EUA em particular — de tentar “desviar a nação iraniana de seu caminho reto”.
Fonte: CORREIO BRAZILIENSE, via NOTIMP