Não cabe mais ninguém
Solange Azevedo e Alan Rodrigues
O Aeroporto Internacional de São Paulo é o território mais cosmopolita do Brasil. Cerca de 140 mil pessoas – entre passageiros vindos de 144 cidades e 26 países, funcionários e visitantes – circulam diariamente pelo local. Fincado em Cumbica, bairro do município de Guarulhos a 25 quilômetros do centro da capital paulista, o aeroporto é o mais movimentado da América do Sul e o segundo no ranking da América Latina. Só perde para o da Cidade do México. Sete de cada dez viajantes vindos do Exterior ou que voam para fora do Brasil, passam por Cumbica. Os números superlativos, no entanto, revelam uma estrutura superada. Nos horários de pico, o fluxo de gente costuma exceder em mais de 50% a capacidade dos terminais e os passageiros são obrigados a enfrentar cerca de duas horas de fila tanto no check-in quanto no desembarque internacional – enquanto os órgãos internacionais recomendam uma espera de, no máximo, 30 minutos. Nos últimos dias, ISTOÉ esmiuçou o cotidiano da principal porta de entrada e saída do País. Ouviu especialistas, autoridades do governo, funcionários e passageiros. A equipe de reportagem passou 24 horas consecutivas no aeroporto, entre a quarta-feira e a quinta-feira da semana passada. Testemunhou todo tipo de sentimento e reação: ansiedade, emoção, cansaço, descontração, indignação.
“Os serviços prestados em Cumbica são péssimos”, avalia Anderson Correia, diretor da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Transporte Aéreo. “O conforto e a forma de operação em alguns espaços, como as salas de embarque remotas (em que os passageiros são levados de ônibus às aeronaves) e as de restituição de bagagens, receberiam notas D ou E, segundo critérios internacionais. Estão próximas do colapso.” Viajantes como a paranaense Tatiane Souza, 30 anos, sentem na pele o que essas notas representam. “Foi um absurdo a forma como trataram a minha família”, diz. Por mais de 24 horas, ela tentou embarcar com o marido e os filhos para a Espanha. O calvário começou quando o avião que os trazia de Curitiba não aterrissou em Guarulhos no horário previsto. Quando finalmente a família conseguiu chegar, o embarque para Madri estava encerrado. Juscelino, marido de Eliane, conta que faltavam 25 minutos para o voo decolar, mas os funcionários da TAM não permitiram a entrada dos retardatários.
Juscelino relata que, depois de muita discussão, eles foram levados para um hotel. Passava de 2h e não havia mais vagas. A família só conseguiu se hospedar em outro local, às 4h da manhã. A viagem foi remarcada para a noite seguinte e os aborrecimentos não cessaram. O aeroporto continuava desconfortável, cheio de filas, mal iluminado. Na sala de embarque havia cerca de 200 pessoas, mas apenas 75 cadeiras. Alguns tentavam descansar se recostando nas paredes. Outros esticavam as pernas – ou o corpo todo – sobre os ladrilhos. Antes de deixar o Brasil, os Souza tiveram de esperar mais de três horas sentados no chão frio. Os 45 dias de férias acabaram ali, literalmente, em solo brasileiro.
A sensação de impotência e descaso que os passageiros experimentam é decorrência do crescimento vertiginoso e desordenado do aeroporto. Desde a inauguração, em 1985, o número de viajantes foi multiplicado por dez e o de pousos e decolagens aumentou quase cinco vezes. Mas os investimentos em infraestrutura foram escassos. O terceiro e o quarto terminais de passageiros, previstos desde a concepção de Cumbica, não saíram do papel até agora. Apenas um deles está em fase de licitação. Se tudo der certo, deve ser inaugurado em 2014, às vésperas da Copa do Mundo. Um estudo do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (Snea), divulgado recentemente, mostra que a situação de sete dos 12 aeroportos que servirão as cidades-sede da competição é preocupante. O de Brasília, por exemplo, fechou o ano passado com 12,2 milhões de passageiros – movimento 22% superior a sua capacidade. Mesmo que as obras planejadas sejam concluídas no prazo, é provável que sejam insuficientes. “Nosso maior desafio não é a Copa nem a Olimpíada, é atender ao aumento da demanda normal e as pessoas que já estão voando”, afirma Murilo Marques Barboza, presidente da Infraero, estatal que administra os aeroportos.
Um dos principais entraves no Brasil é que os voos estão concentrados em determinados horários, como no início e no fim do dia. Se fossem distribuídos de maneira uniforme, o desconforto seria menor. Na quarta-feira passada, entre 5h e 6h, 1.950 pessoas chegaram do Exterior. Na primeira etapa do desembarque, a imigração, tiveram de passar pela Polícia Federal. Há 18 guichês nos dois terminais. O que significa que cada funcionário teve de atender, em média, 108 passageiros que aterrissaram naquele intervalo. Na outra etapa do desembarque, a da restituição das bagagens, há 12 esteiras. Entre cada uma delas existem 12 metros de espaço. No entorno de cada esteira ficaram amontoados, em média, 162 passageiros com seus carrinhos. Vencida essa fase, considerada por muitos a mais sofrida, ainda é necessário passar pela alfândega. Nove em cada dez passageiros vão para a ala dos que não têm “nada a declarar”. Percorrem, em fila única, com seus carrinhos pesados, um corredor de cerca de dois metros de largura antes de ser liberados. Esse desgaste, no entanto, não ocorre em certos períodos do dia. Entre 2h30 e 5h da quinta-feira, o desembarque internacional ficou vazio – às moscas.
O processo de desembarque, em geral, é ainda mais estressante porque os viajantes passam muitas horas dentro do avião. A professora Marli Roma, 50 anos, aguardava ansiosa a filha adolescente que chegaria do Canadá, depois de 15 horas de voo. “Onde você está?”, perguntava pelo celular. “Minhas malas não chegam, mãe.” Beatriz, 18 anos, levou mais de uma hora para desembarcar. Surgiu esbaforida empurrando um carrinho pesado. Teve de parar no caminho porque esbarrou numa porta estreita e derrubou a bagagem.
Cumbica foi projetado com a intenção de operar no mercado doméstico. Mas rapidamente o governo cedeu às companhias aéreas, que pressionaram para transferir os voos internacionais do Galeão, no Rio de Janeiro, para São Paulo – o centro financeiro do País. As áreas de imigração e alfândega tiveram de ser improvisadas para atender à demanda cada vez maior. A falta de planejamento é evidente. “Para dar maior celeridade, é necessário alterar a logística e o layout do desembarque”, opina Seiken Tasoko, inspetor-adjunto da Receita Federal. Para efeito de comparação: o Aeroporto Internacional Gatwick, em Londres, tem dois terminais e duas pistas de pousos e decolagens – assim como Cumbica – e atende 50% mais passageiros. “A diferença é que, em Gatwick, os terminais e o pátio das aeronaves são mais bem aproveitados e há mais saídas rápidas das pistas”, avalia o comandante Ronaldo Jenkins, diretor do Snea.
Mesmo nos trechos nacionais, em que não é preciso passar pelos controles da Polícia e da Receita, os passageiros penam. A empresária Gisele Ribeiro, 22 anos, levou duas horas para fazer o check-in para a capital do Amazonas na noite da quarta-feira. “Nunca peguei uma fila tão grande em toda a minha vida, que inferno”, reclama. Segundo Francisco Luiz Xavier de Lemos, presidente do Sindicato Nacional dos Aeroportuários, parte da lentidão é fruto da falta de fiscalização. “Muitas vezes, há filas enormes no check-in, e metade dos boxes das empresas aéreas não tem funcionários”, diz. “As esteiras ficam rodando vazias porque as companhias não colocam gente para levar as malas.” Para ninguém sair prejudicado, o aeroporto tem de funcionar como uma orquestra. Se alguém falha, os efeitos são imediatos. “Cumbica precisa incorporar as melhores ferramentas de gerenciamento de pistas e terminais”, acredita Respício do Espírito Santo Júnior, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Estratégicos e de Políticas Públicas em Transporte Aéreo. Segundo ele, um “choque tecnológico” é fundamental para melhorar a movimentação das aeronaves e o conforto dos passageiros.
Os viajantes ficam tanto tempo dentro dos aeroportos que muitos deles se transformaram em shopping centers. Em Cumbica, há 197 pontos comerciais. A receita bruta, que inclui tarifas aeroportuárias e arrecadação com o comércio, foi de R$ 680 milhões no ano passado. Tem de tudo: chaveiro, consultório dentário e até uma sala ecumênica – onde há uma rosa dos ventos pregada na parede, com o leste destacado, para orientar os muçulmanos. A professora baiana Deise Viana, 26 anos, se sentiu obrigada a experimentar uma das cabines do Fast Sleep, uma espécie de hospedaria expressa. Pagou R$ 145 para dormir entre cinco e oito horas. Deise voltava do Chile e perdeu a conexão para Salvador porque o voo em que estava foi desviado para o Rio de Janeiro. Deise esbravejou, mas não teve ajuda da companhia aérea. Tentou reclamar à Agência Nacional de Avião Civil (Anac). Passava das 22h e ela deu com a cara na porta. Ainda que Deise quisesse apelar para Deus, também não conseguiria. Até a sala ecumênica estava fechada.
Colaborou Hugo Marques
Fonte: REVISTA ISTO É, via NOTIMP